sábado, maio 05, 2007

Olá!




Olá de quem não tem mais nada para dizer de começo a não ser três letras que pouco ou nada dizem. Olá de «estou aqui, consegues ver-me?»? Olá de «cheguei, tens alguma coisa de útil para me dizer?»? Olá de «Sim, estou viva, mas não me chateiem»? Não. É um Olá de Olá que pouco Olá contém. O meu Olá. É um Olá de «estou aqui, sim, não de livre vontade, mas porque sou escrava de uma necessidade». Nada quero de vós a não ser a vossa imagem de sombra igual. Massa compacta de vulto negro. Talvez por ser de noite. E porque eu exijo que seja noite. As minhas palavras de dia desfazem-se. Desfazem-se em pó para que de noite renasça do brilho das estrelas e da luz da lua. De dia tudo em mim dorme, para que somente à noite tudo ganhe vida. Seja dor ou prazer, tudo ganha respiração. Tudo vive para tudo morrer no nascer do sol, quando as minhas pálpebras não resistem mais a turbulenta necessidade natural de descanso. Só não é turbulenta quando o sonho me vem visitar tranquilamente e me envolve na sua cauda cintilante e me deixa navegar sem mergulhos intensos de matéria.
Acreditam que acordo com uma música no ouvido? Pois bem. É uma música tão imensamente bela que me deixa esticada sobre os lençóis a lutar arduamente pela sua continuidade. Tão bela. Bela, bela, bela. Soando em eco vindo do poço incerto de profundidade escura. E sinto medo por não saber o seu limite. Então, jogo uma pedra e ouço o seu chegar ao fim. E sinto medo na mesma. Afinal não era assim tão profundo.
O que quero? O que preciso? O que temo afinal? Quem sou? Que faço aqui? Nunca sei o suficiente para responder seja o que for. Só sei que o meu Olá é triste e de vós nada anseia, a não ser a minha ideia da vossa existência, talvez um pouco coberta de corpo e vestes de imaginação. E porque só essa minha pequena imaginação ainda não me trai.
Estou a passar por uma crise de não sei o que lhe chamar. Comecei a escrever uma história que tudo me dizia a começo. Desenhei-a na minha mente com tanta perícia que repentinamente fui deixando de sentir as amarras duras que me prendem as asas. A voz do seu desenho que traçava a púrpura as cores da minha alma e o vento do meu passado em saudosismo alegre, libertavam-me e voava constantemente.
Desenhei. Desenhei sem cansaço. E porque o prazer bombeava o sangue parado e pisado das amarras. Desenhei até escassear o tempo parado entre o meu tempo. O tempo voltou a correr porque voltou a sentir-se. E nada podia fazer, a não ser nunca esquecer os traços do meu desenho querido e prometer-lhe a volta ao prazer.
Hoje tenho mais de dez esboços de desenho parados no tempo parado. Entre eles a minha primeira história desenhada. E o que verdadeiramente me perturba é o ter ouvido a sua voz chamar por mim por tão curto momento. Uma voz tão terna e inocente e ao mesmo tempo tão empolgante e endiabrada. Naquele instante o meu sangue corria cego e a minha pele empolava de fervor. Naquele instante em que o instante era apenas o começo. Naquele instante em que o instante não passava de um pequeno instante de começo. Um começo e mísero começo. O instante de começo que se destinava à morte. E foi isso que aconteceu a partir daquele momento. A sua voz foi perdendo força. Ainda foram muitas as vezes em que insisti pela sua bravura. Sua ou minha? Insisti pela necessidade de voar. Implorei pela vontade. Implorei para que acordasse das amarras. Mas já era tarde. O instante já tinha sido e já não era mais.
Ás vezes tenho a impressão de que ainda a ouço. Sim, a voz. Chama-me pelo desenho antigo, e volto a visitar o esboço preparando o seu continuar, mas já não encontro a ponta de partida e a chegada teima em não fazer sentido e partem-se as linhas traçadas. Desfazem-se. Linhas mal traçadas ou, talvez, já secas de velhice. Pobres linhas que tanto tempo esperaram. Esperavam pelo tempo parado, mas o tempo corrido não deixou. Ou não estarei a julgar mal as culpas?
O que quero? O que preciso? O que temo afinal? Quem sou? Que faço aqui?
São tantas as confusões que vivem comigo que já nem sei porque me lembro delas. Cada vez que as tento agarrar pelo meu caminho – o único que tenho – perco-me na direcção e entro em labirintos que só me retribuem ainda mais confusões. É caso para dizer que quanto mais as tento destruir mais novas nascem.
Pobres confusões. Até já tenho pena delas. Já convivem comigo há tanto tempo que já lhes ganhei carinho.
Mas não foi para abraçar as minhas confusões que decidi dizer-vos este Olá. Ainda mal vos falei do que se trata este meu Olá. Nem sei se é essa a minha humilde intenção. Nem tão pouco vos falei do que poderá estar para vir. Também, não sei desvendar os mistérios do meu futuro. Apenas pretendo deixar os meus dedos viver. E porque temo muito – e isso consigo identificar com muita certeza em mim – o deixar morrer a voz, a única que me permite libertar das malditas amarras, nem que seja somente por breves instantes. A voz é a alma e os meus dedos o seu corpo. Preciso tentar, nem que seja apenas insistir no que tenho ao alcance e que é esse simples “tentar”. Preciso não só não deixá-la morrer, como também tentar prolongar-lhe a vida. Ampliar o seu alcance. Encher de sangue os meus dedos. E tudo para que um dia possa olhar para trás e sorrir para o quanto voei. E porque eu preciso voar. Essa é a minha necessidade.
E assim mergulho em mim. Quero que este Olá morra agora para que as nossas apresentações já não sejam precisas e dêem lugar ao vaguear solto das minhas palavras. Mas advirto para esse meu vaguear. Ele poderá não ser bem compreendido, ou talvez visto como cansativo pela confusão de associações e pensamentos. E isso não é mais do que a essência da verdade em mim dita por palavras. Quem vos disse que a verdade é simplicidade? Eu quando mergulho em mim procuro verdade e não omissões. A simplicidade é rápida e deixa coisas por dizer e a verdade em mim é extensa e complexa. A verdade para ser completa tem de ser saboreada e mastigada com deleitação. E porque ao conhece-la continuamos o traçar do nosso próprio desenho.
Eu quero muito continuar a traçar o meu próprio desenho e aproveitá-lo para procurar terreno fértil que me permita reerguer a voz. Dar vida, através do deleite das minhas asas livres, ao meu tracejado inanimado e voar graças a ele. Voar pela sua criação. Dar sangue às suas veias e musculo à sua carne.
Voar é a palavra perfeita. E porque não nasci para me arrastar. Ninguém nasce para tal. Nasci para sentir o vento na cara e beber silêncio de paz. Mas não uma paz qualquer. Sim, porque a paz qualquer é igual à morte única que conhecemos. E não é essa que quero. Não a paz de “está tudo bem, hoje, amanhã e depois”, mas a paz de “está tudo bem hoje, sim, mas amanha e depois estará melhor”. A paz que me faz abrir as asas no seu esplendor e saltar do cimo da montanha sem medo da queda, porque lá em baixo encontra-se o solo fértil que cultivei com muita fadiga. E assim, a sobrevoar o passado e a vontade antiga, gritar Liberdade e deixar o vento em silêncio cantado pelas folhas beijar-me a face e limpá-la dos medos vestidos de confusão.
Que assim sejam estas as férias e a escola do meu voo.

Adeus Olá.
E assim Morreu o Olá.