“De mão no próprio coração”
“Sorri ao vê-la com a mesma emoção que sempre se amplia em mim na sua presença. E ali, rodeada de palavras e gestos tão doces como o perfume das suas flores bem-educadas todos os buracos negros da minha alma se preenchem de sol. Somente ali encontro chave para a cor fazer sentido. O horizonte pode ser impossível de alcançar com uma mão, assim como o sonho, enquanto que o abismo está a um passo dado na incerteza. Profundo e misterioso pode ser o mar. Quando vivia com a avó, lembro de me colocar em bicos de pés para conseguir ver pela janela. Lembro igualmente de que o mundo parecia maior e toda essa grandeza me sabia a entusiasmo. O mar visto numa página de um livro mostrado pela avó revelava profundidade, mas uma profundidade que não me assustava de medo. O mistério nas suas mãos, nas suas palavras, no seu olhar era mistério, mas não um mistério assombroso, era um mistério que me enchia de emoção e vontade. O horizonte apontado pela avó mostrava-me a verdadeira alma da sua inatingível longitude e a sua janela era simultaneamente um forte e uma almofada que me protegia da minha impaciência. E onde está agora essa impaciência? Uma porção da sua inebriante vontade está no olhar reconfortante, nos gestos e palavras ternas de Dona Matilde. As flores, a janela, os livros não são mais do que cenário compondo a memória que guardo do seu carinho e atenção. Tudo em si me transporta à delicadeza de um gesto do passado ou constrói um no presente. Tudo em si afasta-me do escuro porque tudo em si é sol. O sol que vitamina as suas flores. O sol que sempre agradece a Deus mesmo na dor.
Aceitei, pois, o seu silêncio e levantei a face ao céu absorvendo o máximo de ar possível. Dona Matilde levou com a sua mão a minha ao meu peito e disse:
- Sente. Apenas sente.
Fechei os olhos e senti. Senti o vento murmurar-me ao ouvido segredos de verdade guardados em mim. O pulsar daquele momento em que viva se sente a folhagem morta ao olhar aparente. Os seus dedos sempre me pareceram tão fortes apesar de pequenos e finos. E ainda hoje intrigam a minha ignorância, assim como todo este aroma que nos envolve e que tanto me conforta a alma.
Quebrei o âmago do silêncio abrindo os meus olhos ansiosos por oferecer aos da avó um olhar de ternura agradecida e albergada de palavras por dizer. Mas, apercebendo-me de uma lágrima sua, do meu alcance por se esconder, sustive as palavras quentes por sair e busquei outras de dócil mudez. Não tinha a certeza se se tratava de uma lágrima de emoção ou de tristeza fugitiva. Era, apesar de tudo, mais doce acreditar na emoção do momento. A mesma que sentia. Então, e desta vez, peguei eu na sua mão e deixando a fala para os pássaros e para o vento, assentei-a no seu peito colocando simultaneamente a minha no meu e beijei-lhe a face com um sorriso. E disse a mim mesma, naquele instante: «Não há forma de expressão maior do que a das palavras de silêncio». Fechámos ambas os olhos e durante uns minutos, juntas, mantivemo-nos assim de mão no próprio coração.” (excerto de “E fez-se silêncio” by Cristi)
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