sexta-feira, dezembro 16, 2005

E por um instante entrámos em silêncio...



“E por um instante entrámos em silêncio. Os meus olhos iniciaram uma breve viagem a tudo o que despertasse os meus sentidos. Da plataforma azul ao estrado verdejante, do violáceo manto agregado a um lado cobrindo os pés de uma árvore, das nuvens de espuma branca contornando o espelho dos patos, da púrpura, do azul, do amarelo, formavam uma deflagração de cor e de vida. O cheiro a algodão doce e a limpidez, o cheiro a terra molhada, o odor a natureza fresca e perfumada, o aroma suave de uma fruta verde e idealizada, podavam-me o espírito da lôbrega quietude. E ali, pegando nas mãos da avó, todo o meu corpo parecia ter sentido e toda a minha alma acreditava-se possante.
Subitamente, uma enorme aragem de vento passou por nós e eu fechei os olhos como se a pudesse absorver inteira e guardá-la nos pulmões, de modo a purificar todo o meu ser naquele instante sagrado e ter de reserva para necessidades.
Soltei-me do conforto dos braços e mãos da avó e fui a correr para a beira do lago, com uma vontade imensa de ser também eu água, terra, planta, céu e vento. Como se fosse possível libertar-me do corpo inepto que me prende à impiedade e às inexoráveis palavras consolidadas de insegurança e sacrilégio. Como se fosse possível sorrir com os raios de sol e voar com o vento. Como se o perfume das flores, ali, naquele mar de cor, me alagasse de expectativa e vontade de viver, nem que fosse só por um lapso de instante em que a mente se desengana das sombras perseguidoras que me chamam para a submersão latejante. Sombras palpitantes de incerteza, sombras pulsantes de potestade, sombras, por vezes, amigas de compunção, sombras insepultas, sombras tenazes. Mas, naquela circunstância, as sombras não estavam presentes por momentos e o lenitivo que respirava fazia-me sentir tudo e nada. Fez daquele jardim, por uma leve brisa, o lenimento da minha alma.”
(excerto de "E fez-se Silêncio" by me)